SOMOS O POVO DAS ÁGUAS
Somos feitos das águas escondidas sob o chão de argila dura, onde só raízes fundas chegam.
Quem nos vê se engana.
Povo torto, decíduo.
Povo que ascende pra baixo,
povo sentido de maio a outubro.
Ser torto é nosso requinte.
No sequeiro parimos flor.
Mas somos o povo das águas do Cerrado.
Das chuvas de outubro.
Das aguinhas que afloram mansas, roçando o capim,
o brinco de princesa, o rabo de boi, o flechinha.
Águas de veredas e buritis. Das grotas e dos sumidouros.
Águas diminutivas, águas-carinho.
Loquinhas, Macaquinhos, Pratinha.
Águas-bichos. Capivara, rio do Peixe, Galinhas, Urubu.
Águas-lugares. Carioquinhas, Maranhão.
Águas que não contam pra ninguém. Segredo.
Águas de pintar. Rio Vermelho, Preto, poço Azul.
Águas preciosas. Esmeraldas, rio da Prata, dos Cristais.
Águas rezadoras e devotas que velam por nós.
Abade, rio das Almas, Santa Bárbara, São Miguel, Rosário, Lázaro, Anjos e Arcanjos.
No Cerrado, as águas e as pessoas se confundem.
Tem pessoa remanso, pessoa riachinho, pessoa imensa. Pessoa Tororó, Raizama, Almécegas, rio das Velhas.
As águas têm destino, percurso e tempo. Mas são só uma. A mesma. São todas emendadas.
Águas Brejinho e Vereda Grande, que nascem de mãos dadas e nunca se separam.
Vão só juntando outras.
As pessoas também são assim:
vão se juntando, ficando emendadas, maiores, guardiãs.
E quando se tornam amazônicas e platinas são memória de outras tantas pessoas que vieram da mesma nascente.
Somos todos guardiães das Águas Emendadas
Ilustração "A Guardiã das Águas Emendadas": Luda Lima Luda Lima Poema: Marcelo Benini
